Em Primeiro de Abril de 2015, 51 anos
depois do golpe militar, o Museu de Astronomia e Ciência Afins, ligado ao
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, criou o portal
Ciência na Ditadura, com o nome de 471 pesquisadores e professores
universitários que tiveram sua carreira e vida afetadas pela ditadura militar
brasileira (1964 - 1985).
A comunidade científica brasileira, apesar
de pequena nas décadas de 1960 e 1970, foi proporcionalmente um dos setores que
mais sofreu com a ditadura militar.
Estima-se que a ditadura militar tenha
perseguido entre 800 e 1000 pesquisadores, que foram presos, demitidos,
aposentados compulsoriamente, torturados ou mortos.
As consequências da ditadura militar para a
ciência brasileira foram brutais. Muitos cientistas perseguidos deixaram o país
e continuaram suas pesquisas no exterior, sendo que muitos deles nunca mais
voltaram. Grupos de pesquisas também acabaram, como o que aconteceu na
Faculdade de Medicina da USP e no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
1964:
o primeiro ano, os primeiros alvos
Os primeiros alvos aconteceram logo depois
do golpe militar através do Ato Institucional de 9 de Abril de 1964. Entre 122
oficiais expulsos das Forças Armadas e 98 parlamentares cassados, o AI – 1
também cassou quatro cientistas brasileiros, entre eles Darcy Ribeiro e Celso
Furtado.
O físico Mário Schenberg, antigo membro do
PCB e que tinha sido eleito deputado por duas vezes, na época com 50 anos e professor
do Instituto de Física da USP, foi também um dos primeiros presos pela ditadura.
Em uma entrevista sobre o período, ele disse que:
Fiquei preso por dois meses. Eu fui preso sete dias
após o golpe. Era bem tarde da noite (...) quando bateram na porta do
apartamento onde morava. Quando fui ver quem era, entraram com metralhadora em
punho e me levaram para um carro, sem dar explicação. Depois percebi que estavam
me levando para o DOPS e fiquei mais sossegado, porque também poderiam estar me
levando a um lugar ermo para me matarem.
Nas instalações do DOPS não havia nenhuma condição
para prenderem as pessoas. Uma cela que era para quatro pessoas chegava a ter doze.
(...) Não saia ninguém do DOPS sem pagar. Havia um delegado que não soltava
ninguém sem receber suborno. Eu não paguei e só me soltaram quando chegou ordem
para isso.
Mais tarde, depois de já ter sido preso e libertado,
começaram a fazer processos e saiu uma prisão preventiva contra mim. Eu estava
no meu apartamento quando alguém me telefonou avisando que o Tribunal havia
decretado prisão preventiva contra mim. Fugi e não voltei mais. Fiquei na casa
de amigos. Durante cinco meses, vivi escondido até conseguir um habeas corpus.
Ele ainda comenta que, quando voltou para
universidade, o ambiente tinha mudado:
Uma coisa curiosa é como muitos professores que antes
eram pessoas bastante progressistas, depois do golpe ficaram com uma
mentalidade fascistóide. Engraçado como conseguiram criar um ambiente, imaginar
um levante esquerdista, quando não havia coisa nenhuma: foi uma intensificação
de propaganda de direita financiada pela CIA.
Lançado em 2015, o livro conta trajetória científica e
politica de Mário Schenberg. Mais informações em: http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/mario-schenberg-cientista-critico-de-arte-pacifista-e-homem-de-partido/
A ditadura militar não atingiu, portanto,
apenas os pesquisadores ligados às ciências humanas, mas todos aqueles que
tinha uma liderança política e acadêmica nas universidades brasileiras.
Isaias Raw, na época professor da Faculdade
de Medicina da USP, também foi alvo de perseguições politicas mesmo sem
envolvimento com partidos ou organizações politicas. Em 1964, foi cercado por
uma patrulha às 23h, detido e
ficou preso por 13 dias, acusado de atividades subversivas pela comissão
interna da universidade. Procurando uma justificativa para sua prisão, ele
conta que
Como eu tinha muitos
projetos para renovar o sistema educacional, me tornei um sujeito perigoso para
eles.
A
Universidade de Brasília (UnB)
A Universidade de Brasília (UnB) foi a
universidade cujos professores mais sofreram com a repressão da ditadura
militar. Criada em 1962, a UnB foi um dos projetos universitários mais ousados
que o Brasil já teve, “com a promessa de reinventar a educação superior,
entrelaçar diversas formas de saber e formar profissionais engajados na
transformação do pais”. Idealizada por Darcy Ribeiro, contou com a participação
do educador Anísio Teixeira e do arquiteto Oscar Niemeyer.
Em 1964, o exército invadiu salas de aula
da UnB, escritórios de professores e revistou alunos e professores atrás de
armas e propaganda. Logo depois, o reitor da universidade, o educador Anísio
Teixeira, foi demitido.
No ano seguinte, em 1965, depois da
demissão de três professores por “conveniência da administração”, professores e
estudantes entraram em greve. A universidade foi mais uma vez invadida pelo
exército, e mais 15 professores foram demitidos por “medida disciplinar” como
responsáveis pela greve, além de terem se manifestado de forma “subversiva”
durante assembleia.
A reação à demissão desses professores foi
enorme: 223 dos 305 professores demitiram-se em solidariedade. Oscar Niemeyer,
depois de pedir demissão, nunca mais voltaria a dar aulas.
O AI
– 5
O Ato Institucional n˚5, baixado em 13 de
Dezembro de 1968 pelo general Costa e Silva, que valeu até o ano de 1978, deu
poder aos governantes para punir os que fossem contrários ao regime. O AI – 5
permitiu a intervenção do presidente da República nos Estados e Municípios,
suspender direitos políticos e cassar cargos eletivos.
No final de 1968, 11 deputados federais
tiveram seus mandatos cassados pela ditadura militar. Em Abril de 1969, 41
professores universitários, também com base no AI – 5, foram aposentados compulsoriamente,
entre eles o físico Mário Schenberg, os sociólogos Florestan Fernandes e
Fernando Henrique Cardoso, os arquitetos Villanova Artigas e Paulo Mendes da
Rocha, e o médico Isaias Raw.
Desses 41 professores universitários, além
de Mário Schenberg, da USP, existiam outros 5 físicos, todos da UFRJ. Os
protestos contra essas demissões foram internacionais, com a manifestação de
cientistas prêmios Nobel, carta da Sociedade Francesa de Física e noticias nas
maiores revistas científicas do mundo, como Nature
e Physics Today. Porém, tudo isso foi
em vão para leva-los de volta à universidade.
O
parasitologista da Faculdade de Medicina da UFMG Amílcar Vianna Martins,
afastado da universidade em setembro de 1969 pelo AI – 5, conta que seu
afastamento foi
uma
tremenda injustiça, pois eu não tinha nenhuma atuação, não era militante.
Tentaram me punir porque me consideravam comunista. Não era comunista coisa
nenhuma! Na verdade eu era esquerdista. Por trabalhar com doenças que afetavam
principalmente a camada mais pobre da população, tinha uma nítida tendência à
esquerda. Então acharam que eu era comunista e resolveram me aposentar. Pelo
que fiquei sabendo mais tarde, essa decisão estava relacionada à influência que
eu exercia sobre os estudantes. Tinham medo de que eu pudesse levá-los a fazer
qualquer coisa.
O
massacre de Manguinhos
O que aconteceu com Amílcar Vianna Martins,
em 1969, praticamente pela mesma razão, veio a acontecer com um grupo de
cientistas do Instituto Oswaldo Cruz.
Fundado em 1900 na fazenda de Manguinhos,
na Zona Norte do Rio de Janeiro, o então Instituto Soroterápico Federal
incialmente fabricava soros e vacinas contra a peste bubônica. Oswaldo Cruz,
desde o inicio no Instituto, liderou o Instituto na reforma sanitária que
erradicou a epidemia de peste bubônica e febre amarela da cidade, em 1907. No
ano seguinte, o Instituto passou a se chamar Instituto Oswaldo Cruz.
Tendo se transformado em um dos centros
mais importantes de saúde pública no Brasil, o Instituto Oswaldo Cruz logo foi
alvo da ditadura militar.
O diretor do Instituto nomeado pela
ditadura, Rocha Lagoa, começou uma série de falsas acusações a diversos
pesquisadores, inclusive rejeitando o financiamento nacional e internacional a
determinados cientistas. Um desses cientistas, Walter Oswaldo Cruz, filho de
Oswaldo Cruz, que também tinha participado da fundação da UnB, foi acusado de
proselitismo político contrário ao regime militar e ao diretor do Instituto,
tendo seu laboratório fechado. Em 1967, Walter morreu aos 57 anos de ataque
cardíaco.
Um dos maiores ataques à ciência brasileira
viria a acontecer 3 anos depois, também pelas mãos de Rocha Lagoa, que, depois
de sua passagem pelo Instituto Oswaldo Cruz, tornara-se ministro da saúde. Em
1970, dez pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, tiveram seus direitos
políticos cassados. Além de aposentados, eles não poderiam lecionar ou realizar
pesquisa no pais, além de não poderem exercer atividade em instituição público
ou privada que fosse financiada pelo governo.
Foto dos 10 pesquisadores afastados pela ditadura
militar do Instituto Oswaldo Cruz: Haity Moussatché, Herman Lent, Moacyr
Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião
José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito Arcoverde Cavalcanti de
Albuquerque.
Além de representarem uma parcela
significativa do Instituto Oswaldo Cruz, que contava com 70 pesquisadores,
todos os 10 cientistas afastados eram líderes de projetos e tiveram seus
laboratórios desmontados. As perdas para a continuidade das pesquisas no
Instituto Oswaldo Cruz, e para a ciência brasileira, são inestimáveis.
Roberto Lent, filho de um dos cientistas
afastados, Herman Lent, conta que
a
cassação dele foi totalmente arbitrária. O meu pai era socialista, mas não era
ligado a partido nenhum. O ministro da Saúde, na época, não gostava de como
esses cientistas se portavam na Fiocruz, então resolveu se vingar deles. Dois
anos depois, meu pai achou melhor ir para a Venezuela, onde foi contratado pela
Universidade de Mérida. Depois foi para o Museu de História Natural, em Nova
York, nos Estados Unidos.
Foi
um prejuízo muito grande para o país todo. Continuou suas pesquisas lá fora,
então quem ganhou foram os Estados Unidos e a Venezuela.
Depois do fim da ditadura militar, em 1986,
os pesquisadores foram integrados novamente ao Instituto Oswaldo Cruz. A
cerimônia contou com as presenças de Darcy Ribeiro, Ulysses Guimarães e do
então presidente José Sarney. Ao final da cerimônia, os atores Paulo José e
Antônio Pedro enceram a peça Galileu Galilei, de Brecht.
Foto da cerimônia de 1986 da reintegração dos
pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz cassados pela ditadura militar. Ao centro, Ulysses Guimarães, e à direita, em
branco, Darcy Ribeiro.
Quase 350 anos depois de Galileu, condenado
a prisão perpétua pela Inquisição Católica por defender o movimento da Terra, a
ciência brasileira, durante a ditadura militar, voltou a passar por um período
de perseguições, com enormes prejuízos não só ao desenvolvimento da pesquisa no
pais, mas também cultural, econômico e politico. Hoje, depois do que aconteceu
com Galileu e com os centenas cientistas brasileiros atingidos pela ditadura, a
história é capaz de julgar os verdadeiros culpados.
Quadro do julgamento de Galileu. Durante a ditadura militar brasileira, a ciência brasileira passou pela mesma situação que o cientista italiano.
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