O eclipse de Sobral (1919) e a visita de Einstein ao Brasil (1925)

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Depois de uma série de exposições, palestras, conferências e solenidades em comemoração aos 100 anos do eclipse de Sobral, a última atividade dessa efeméride aconteceu em 6 de novembro, com o lançamento do livro O eclipse de 1919 – A comprovação da teoria da relatividade geral, a física moderna e o Observatório Nacional.

Cartaz do evento de lançamento do livro.

Segundo Christina Helena Barboza, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), o lançamento do livro foi realizado para coincidir com os 100 anos “da reunião conjunta da Royal Society e da Royal Astronomical Society, em Londres, quando foram divulgados os resultados das observações”. O livro conta com 10 artigos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, inclusive de Barboza, cujo artigo O Observatório Nacional e a observação de eclipses solares: ciência e cooperação internacional abre o livro.


Christina Barboza, do MAST.

A trajetória das comemorações dos 100 anos do eclipse de Sobral até esse lançamento foi longa. “Principalmente por iniciativa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os preparativos começaram em abril de 2018”, explica a pesquisadora do MAST. Além da SBPC, participaram das comemorações o Museu do Amanhã, o Observatório Nacional (ON), o Museu de Astronomia, a Sociedade Brasileira de História da Ciência e a Sociedade Astronômica Brasileira.

Barboza lembra que a primeira atividade das comemorações aconteceu ainda em 2018, quando, em outubro, foi realizado o pré-evento Eclipse de Sobral – 100 anos, que fez parte das comemorações do ano Brasil – Reino Unido de Ciência e Inovação 2018/2019. O pré-evento contou uma palestra do curador de instrumentos científicos do Observatório de Greenwich, Richar Dunn, além de representantes do ON, do MAST e da Universidade de Lisboa.

O MAST, em parceria com o ON, também organizou a exposição O Eclipse – Einstein, Sobral e o GPS, que ainda pode ser visitada no museu. As instituições científicas compilaram as atividades em comemoração aos 100 anos do eclipse de Sobral no site http://www.mast.br/sobral/, que conta com um acervo de imagens da expedição, de instrumentos e documentos de época. Em maio, o ON também lançou o documentário 100 anos do eclipse de Sobral e a comprovação da teoria da relatividade.

Capa do site do MAST e do ON em comemoração ao centenário do eclipse de Sobral.


A cidade de Sobral também foi palco das comemorações do eclipse, sediando no final de maio deste ano o Encontro Internacional Centenário do Eclipse de Sobral (1919-2019), realizado pela SPBC, a prefeitura da cidade e o governo do estado do Ceará. Também na cidade, o ON realizou a exposição Pelo Céu de Sobral, com 80 fotos de Luiz Baltazar da cidade.

Cartaz da exposição Pelo Céu de Sobral.

Todos esses eventos não são à toa. A observação do eclipse do Sol na cidade de Sobral, no Ceará, em 29 de maio de 1919, confirmou uma das previsões da teoria da Relatividade Geral de Einstein, uma das maiores teóricas científicas já formuladas. A ampla cobertura da imprensa brasileira da observação do eclipse teve um papel imenso não só ao introduzir e popularizar essa teoria no país, mas também teve um impacto significativo tanto para a ciência brasileira como também para a educação brasileira.

A cobertura da imprensa brasileira do “esplêndido eclipse” de Sobral

A pesquisador Christina Barboza diz que a cobertura da imprensa brasileira do eclipse de Sobral não foi a primeira nem a maior de um evento científico. “Era a época das revistas ilustradas, e o Brasil já tinha uma grande imprensa”, explica. Antes do eclipse de 1919, tiveram também ampla cobertura da imprensa o eclipse de 1912, com cerca de 200 matérias publicadas, a passagem do cometa Halley, em 1910, além das passagens de Vênus, em 1874 e 1882. 


Fotomontagem de Marc Ferrez em comemoração às três expedições do Observatório Nacional na passagem de Vênus de 1882. Em 1912, Ferrez também participaria da expedição para a observação do eclipse em Minas Gerais.

Porém, por ser um marco na história das ciências, “todos os outros eventos não tinham esse caráter revolucionário que foi dado ao eclipse de 1919”, diz Barboza. “É um outro tipo de cobertura jornalística, com um sensacionalismo na cobertura do eclipse de 1919 que não teve nos outros eventos anteriores”, completa.

Todos esses eventos contaram com expedições do Observatório Nacional (ON), que tinha sido criado em 1827 e que até a Proclamação da República chamava-se Observatório Imperial do Brasil. Em 1908, Henrique Morize, que ingressara na instituição em 1884 como aluno e tornara-se astrônomo titular em 1890, tornou-se diretor do Observatório Nacional. Importante figura não só para o ON como para a ciência brasileira, Morize permaneceria à frente do observatório até 1929, um ano antes de sua morte.


À esquerda: prédio sede do ON no Rio de Janeiro, que foi inaugurado durante a gestão de Morize, em 1921. À direita: Henrique Morize (1860 - 1930).

Segundo Ildeu de Castro Moreira, em O eclipse solar de 1919, Einstein e a mídia brasileira, a cobertura da imprensa do eclipse do Sol de 29 de maio de 1919 iniciou-se logo no primeiro mês do ano, intensificando-se à medida que o dia do eclipse se aproximava. Entre as matérias publicadas, destacam-se uma entrevista com Henrique Morize, em março, e um artigo dos astrônomos da expedição inglesa, Andrew Crommelin e Charles Davidson, publicado em abril n’O Estado do Pará, onde eles ficaram entre a chegada ao Brasil e a ida a Sobral. Esse artigo foi reproduzido por vários jornais, inclusive o Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, no dia eclipse.

Matéria do Jornal do Commércio sobre o eclipse de 1919.

Além do artigo dos “astrônomos inglezes”, a matéria do Jornal do Commércio trouxe ainda informações fornecidas pelo ON sobre eclipse, como sua duração (de cerca de 5 minutos) e uma tabela com o horário do início do eclipse, de sua fase máxima e de seu fim para diferentes capitais do Brasil. No Rio de Janeiro, a matéria diz que o eclipse será parcial, com uma grandeza de 0,514.

Ela cita o trabalho das duas “comissões estrangeiras” presentes em Sobral, a inglesa e a menos conhecida dos EUA, do Instituto Carnagie, que teve o objetivo de “estudar os efeitos exercidos pela escuridão da totalidade sobre a eletricidade atmosférica, as transmissões radio-telegráficas, as correntes telúricas e as variações do magnetismo terrestre”.

Já sobre a comissão inglesa, chefiada pelos astrônomos do Observatório de Greenwich, Crommelin e Davidson, diz que quer “verificar experimentalmente a realidade da hipótese da relatividade ideada por Eustein (sic).” A matéria descreve ainda o trabalho da comissão brasileira, que tem o objetivo de “obter a fotografia da coroa solar”.

Fotos dos membros das três expedições de Sobral.

Apesar de não ter havido cooperação técnico-cientifica propriamente dita entre as missões brasileira e inglesa, particularmente, Barboza diz que “o que houve foi um suporte operacional e logístico, que foi fundamental, inclusive na escolha de Sobral. O trabalho da equipe do ON iniciou-se em 1917, coletando dados meteorológicos, para saber os lugares na faixa de totalidade do eclipse onde a probabilidade de um tempo melhor seria maior.”

Entre os diversos instrumentos utilizados pela expedição brasileira, que contou com quatro astrônomos do ON, um químico, um meteorologista e um mecânico, estavam “uma pequena equatorial fotográfica, ... uma luneta horizontal de oito metros de distância focal, ... em frente à luneta, um heliostato, isto é, um sistema de espelhos movidos por um relógio [que] manterá a fixa na luneta a imagem do sol, apesar do movimento diurno”, diz a matéria. Outros heliostatos ainda foram utilizados para lançar “feixes de luz sobre três espectrógrafos” para analisar a composição do Sol.
  

Um dos espectrógrafos utilizados, acima, e o espectro do Sol de uma das placas. Infelizmente, as fotografias do espectro do Sol não ficaram nítidas.

Finalmente, no que possivelmente foi o primeiro artigo de divulgação sobre a teoria da Relatividade Geral publicado no Brasil, em que se mencionou pela primeira vez o nome de Einstein, Crommelin e Davidson, explicam a teoria de Einstein, elaborada entre 1907 e 1915, comparando-a com a teoria da Gravitação Universal de Newton.

Em uma exposição bastante didática, os astrônomos ingleses dizem que, se antes se considerava que “a Luz transmitida das estrelas pelo éter escapava a força da gravidade”, hoje, “nossos matemáticos concluíram de seus estudos teóricos que um raio de luz, carregando energia, provavelmente está sujeito à força da gravidade, justamente como uma bala no ar.”

Isso, por sua vez, poderia ser provado pela observação de eclipses totais do Sol. O eclipse de 1919, além da longa duração, será especial, segundo eles, “porque haverá um raro e rico campo de estrelas em volta do Sol em eclipse”, as Híades, na constelação de Touro, que já “foram observadas e fotografas, conhecendo-se assim exato e precisamente as suas posições”. Assim, “se a atração do Sol não exerce efeito curvativo sobre os raios de luz, as estrelas fotografadas durante o eclipse total não aparecerão exatamente nas mesmas posições que nas fotografias tiradas as outras vezes”, dizem.

Agora, se o Sol curvar a luz das estrelas atrás dele, tanto a teoria de Newton quanto a de Einstein podem ser válidas, sendo que a de Einstein prevê um desvio quase o dobro da de Newton. Eles ainda explicam que “um segundo de arco é o ângulo compreendido por um centímetro a distância de dois quilômetros da nossa vista”. Mesmo sendo uma “quantidade pequeníssima”, dizem, “ainda [está] dentro, inteiramente, dos limites de medição das fotografias astronômicas de boa qualidade.”

Os astrônomos ingleses, então, iniciam uma breve explicação da teoria de Einstein, dizendo: “ela apresenta o tempo como quarta dimensão. ... se pinta o espaço como sendo análogo em quatro dimensões à superfície da esfera, de sorte que não pode estender-se ao infinito, mas torna a entrar em si mesmo”. Crommelin e Davidson explicam ainda que a teoria de Einstein, quando foi apresentada, em novembro de 1915, “já marcou sucesso, resolvendo um problema de astronomia que permaneceu muito tempo insolúvel”: o movimento do periélio de Mercúrio em 40 segundos de arco por século. “Se a confirmação ulterior que se está procurando se puder obter no próximo eclipse, desaparecerá uma pequena dúvida sobre a verdade da aludida teoria”, dizem.

Por último, eles explicam que, depois de dois anos de preparativos, para evitar que “a situação nublada do mundo” cause “mau êxito completo”, ou seja, que o mau tempo impeça a observação do eclipse, como aconteceu em 1912 no Brasil, outra expedição, “formada pelo Professor A.S. Eddington e o Sr. E.E.T. Cottinghan”, saiu “para operar da ilha do Príncipe, na costa ocidental da África”. Se ambas não conseguirem observar o eclipse do Sol, segundo eles, o próximo ocorrerá apenas em 1922, no Oceano Índico e na Austrália.

Em 29 de maio de 1919, apesar do dia em Sobral começar nublado, um pouco antes do eclipse, o Sol brilhou. Crommelin escreveu a Londres: “esplêndido eclipse”. Na Ilha de Príncipe, na hora do eclipse, a chuva torrencial que caíra antes do eclipse parou, mas o Sol apareceu entre nuvens. Por isso, a mensagem de Eddington foi menos otimista: “apesar das nuvens, esperançoso”.

Foto de Morize mostrando o Sol entre nuvens em Sobral.

Foto do eclipse tirada pela expedição brasileira, com a protuberância do Sol bem acima do disco preto.

“Revolução científica”: o anúncio dos resultados da expedição inglesa a Sobral

Segundo Christina Barboza, “Einstein já era considerado um cientista famoso, respeitado, professor da Universidade de Berlim, não mais um obscuro cientista do Escritório de Patentes da Suíça”. Porém, ele “virou celebridade, praticamente da noite para o dia, depois da comprovação da relatividade”, completa.

O anúncio dos resultados das chapas fotográficas registadas do eclipse observado de Sobral e da Ilha de Príncipe aconteceu no 6 de novembro de 1919, em uma reunião conjunta da Royal Society e da Royal Astronomical Society do Reino Unido, em Londres.

A atmosfera de um “drama grego”, nas palavras de Alfred Whitehead, que antecedeu o anúncio dos resultados foi quebrado pelas palavras do astrônomo real, Frank Dyson: “Após cuidadoso estudo das chapas, estou em condições de afirmar que elas confirmam a predição de Einstein. Obteve-se um resultado definitivo no sentido de que a luz é desviada segundo a lei da gravitação de Einstein”.

O “resultado definitivo” foi obtido com uma chapa tirada em Sobral, que mediu um desvio de 1,98 segundo de arco. Esse resultado estava dentro daquele previsto por Einstein, de 1,75 segundo de arco, e muito longe do previsto pela teoria de Newton, de 0,87 segundo de arco.

Com a figura de Newton ao fundo, Whitehead lembra, “a maior de todas as generalizações cientificas” foi “modificada, depois de mais de dois séculos”. O físico J.J. Thomson, presidente da Royal Society, disse que “esse é o resultado mais importante obtido em relação à teoria da gravitação desde a época de Newton.” Trata-se de “uma das mais altas realizações do pensamento humano”, completou.

O Times, de Londres, escreveu no dia seguinte ao anúncio: “Revolução científica/Nova teoria do universo/Ideias de Newton refutadas”. O mesmo entusiasmo pela comprovação do desvio da luz pela teoria da Relatividade Geral, porém, não se viu nos jornais brasileiros, que seis meses antes haviam realizado uma ampla cobertura do eclipse.

Depois de publicadas curtas notas em jornais, em 12 de novembro de 1919, é publicado um artigo na primeira página de O Jornal, do Rio de Janeiro, escrito pelo professor da Escola Politécnica, Amoroso Costa. Depois de anunciar o resultado de Londres, ele fala das limitações da teoria de Newton, que não explica o movimento do periélio de Mercúrio, descreve brevemente a teoria de Einstein e explica como a previsão de Einstein da curvatura da luz foi confirmada pelo eclipse de Sobral.


Capa de O Jornal de 12 de novembro de 1919, com um artigo de Amoroso Costa sobre a teoria da Relatividade Geral e o anúncio dos resultados do eclipse de Sobral.

“O resultado”, ele escreve, “equivale a uma justificativa experimental das hipóteses admitidas”, possibilitando “descobrir outros [fenômenos] nunca dantes observados”. Isso, segundo o professor da Escola Politécnica, “lhe confere o máximo valor a que pode pretender uma teoria física dedutiva.” Ele conclui dizendo: “É a primeira grande notícia de ciência pura que nos manda, depois da guerra, a Europa sempre fecunda” (ênfase adicionada).

O artigo de Amoroso Costa revela não só seus conhecimentos sobre a teoria de Einstein, que o levariam a escrever o primeiro livro sobre a teoria da Relatividade no país, em 1922, mas também suas preocupações epistemológicas em relação à nova teoria: seu caráter dedutivo, baseado em hipóteses, fruto que ele chama de ciência pura.

Barboza explica que “o eclipse de Sobral, foi um marco, no caso do Brasil, no sentido de favorecer um movimento de alguns cientistas, entre eles o Henrique Morize, em defesa de uma ciência pura, ou seja, da pesquisa básica, e não de uma astronomia puramente aplicada, para a cartografia ou para a determinação da hora”.

Antes, em 1916, o próprio Morize já havia fundado a Sociedade Brasileira de Ciência, que em 1922 passaria a se chamar Academia Brasileira de Ciências (ABC). A criação da ABC teve o objetivo, segundo Antônio Augusto Passos Videira, em sua introdução ao livro Henrique Morize, de “mudar o ambiente científico no Brasil, fazendo valer a predominância da ciência pura”. Para isso, a ABC e os defensores da ciência pura tiveram que combater o positivismo, que influenciava muito ciência e a educação no Brasil e fora a doutrina oficial da Proclamação da República.

Augusto Comte, fundador do positivismo, defendia uma concepção utilitarista de ciência e condenava a pesquisa cosmológica, por exemplo, por não ser um campo do conhecimento que se possa fazer observações diretas e que, portanto, seria “inútil”. Em 1835, ele escreveu: “Nós podemos conceber a possibilidade de determinar a forma, a distância, a grandeza e o movimento do Sol, ao passo que nós não poderemos jamais estudar sua composição química”. O positivismo era, portanto, também uma doutrina filosófica baseada no empirismo, que combatia as “abstrações” das “especulações metafísicas”.

Entre o “radiante céu do Brasil” e as polêmicas em O Jornal: a visita de Einstein ao país

A visita de Einstein ao Brasil aconteceu depois de o físico aceitar um convite do reitor da Universidade de Buenos Aires, José Arce, para realizar um ciclo de conferências na instituição. Convites da Associação Hebraica fizeram Einstein visitar também Montevideo e o Rio de Janeiro. O convite para a visita ao Brasil partiu do rabino Isaiah Raffalovich, em nome de Paulo Frontin, diretor da Escola Politécnica, e Aloysio de Castro, diretor da Faculdade de Medicina.

Segundo Alfredo Tolmasquim, em seu artigo Einstein no Rio de Janeiro: impressões de viagem, o principal motivo da viagem do físico à América do Sul foi o de combater o que ele chamava de “Campanha Anti-relatividade”, que unia anti-semitas, nacionalistas e críticos das novas ideias físicas.

No Brasil, a “Campanha Anti-relatividade” foi liderada pelos positivistas, que estavam presentes tanto nas forças armadas quanto na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e eram os principais opositores da ciência pura. Amoroso Costa, em seu artigo de 1919, já havia antecipado o embate que viria a acontecer na cobertura da visita de Einstein ao Brasil nas páginas de O Jornal. O diário de Assis Chateaubriand, ao mesmo tempo que realizou uma extensiva cobertura e foi o responsável pelo “programa de sua recepção” ao país, abriu suas páginas para longos artigos atacando a teoria da Relatividade.

Em 13 de março, oito dias antes de Einstein desembarcar no Rio e continuar sua viagem para a Argentina, O Jornal anunciou que o almirante Gago Coutinho iniciaria “sua colaboração efetiva ... para uma crítica cerrada às teorias de Einstein sobre a relatividade”. Ele é descrito como “matemático, geografo, explorador dos sertões africanos, homem de gabinete, estudioso e apaixonado das ciências aplicadas”, que “não possui, entretanto, essa aridez intelectual peculiar aos puros especuladores”, uma referência aos defensores da ciência pura.


Anúncio da colaboração de Gago Coutinho a O Jornal, acima, e seu primeiro artigo, abaixo.

No artigo de 17 de março, Coutinho diz que a teoria da Relatividade é uma espécie de “‘cubismo’ científico”, que “faz bola de papel” de nossas ideias “seguras e nítidas”. Diz ainda que a teoria da Relatividade parte de “princípios geométricos abstratos”, o que a impede de “atingir os fenômenos naturais”. Ele contrapõe os princípios abstratos da Relatividade às “hipóteses concretas” daqueles de espírito mais prático, como ele, que se interessa pelos “inventos utilitários”.

Três artigos em O Jornal combatem as posições de Coutinho no dia da passagem de Einstein ao Brasil a caminho da Argentina, em 21 de março de 1925. Eles foram publicados pelos defensores da ciência pura Roberto Marinho, da Escola Politécnica do Rio, Teodoro Ramos, da Escola Politécnica de São Paulo e autor do primeiro artigo original sobre a teoria da relatividade no Brasil, publicado em 1923, e Lélio Gama, do Observatório Nacional e que estivera na expedição a Sobral, em 1919. Os artigos ocuparam toda a página 2 e grande parte da página 4 do diário.

Página 2 de O Jornal de 21 de março de 1925, dia da chegada de Einstein ao Brasil. A foto no meio à direita da página é da expedição brasileira e inglesa em Sobral.

O Jornal refere-se a Marinho e Ramos como “os dois maiores matemáticos do Brasil” e diz que a teoria de Einstein, “o maior gênio que a humanidade produziu desde Newton”, “foi confirmada decisivamente pelo céu do Brasil”. Os artigos deles, por sua vez, são bastante técnicos, particularmente do segundo, tal como aqueles encontrados em revistas ou livros especializadas. Já o artigo de Gama, depois de uma explicação dos métodos para medir a curvatura da luz, diz explicitamente que foi escrito “em defesa do nome de Einstein” contra “certos opúsculos e artigos de divulgação de sua teoria, que não passam de perigosos acervos de interpretações errôneas.” O astrônomo do ON ainda diz que o processo de verificação da curvatura dos raios de luz é “um processo seguro”, e que “o céu brasileiro foi fiel às nossas tradições de hospitalidade.”

Depois de cerca de um mês na Argentina e uma semana no Uruguai, Einstein chega ao Rio de Janeiro em 4 de maio, onde ficaria até dia 12 de maio. Na cidade, Einstein realiza duas conferências, uma no Clube de Engenharia (sobre a Relatividade Restrita), em 6 de maio, e outra na Escola Politécnica (sobre a Relatividade Geral), em 8 de maio. Em meio a almoços e jantares com as comunidades alemã e judaica do Rio e passeios pela cidade, ele visita instituições cientificas brasileiras, como o Instituto Oswaldo Cruz, o Observatório Nacional, o Museu Nacional e a ABC, onde recebeu o título de Membro Correspondente. Em 6 de maio, Einstein também é recebido pelo presidente brasileiro, Arthur Bernardes.

Ao seu amigo Paul Ehrenfest, ele escreve que o Rio de Janeiro é “um verdadeiro paraíso e uma alegre mistura de povos”.

No mesmo dia do encontro entre Einstein e o presidente brasileiro, O Jornal abriu sua primeira página para dois artigos contra Einstein, um de Pontes de Mirando, Espaço-Tempo-Matéria, em que discute as implicações filosóficas da Relatividade, e outro de Gago Coutinho.


Primeira página de O Jornal de 6 de maio de 1925, com os artigos de Pontes de Miranda e Gago Coutinho.

Desta vez, o ataque do almirante à teoria de Einstein vai além daquele do primeiro artigo, contestando as “verificações experimentais da teoria, como do periélio de Mercúrio e do eclipse do Sol. Para o caso do eclipse do Sol, ele explica o desvio da luz dizendo que “em torno do Sol existe uma atmosfera, extremamente rarefeita, que deixa passar a luz das estrelas apenas com fraco desvio – ou refração – encontrado agora”. Ele também considera que o desvio pode ser explicado pelo “intenso campo eletromagnético [do Sol], ao qual a propagacão da luz não pode ser indiferente”. Coutinho conclui afirmando que “qualquer destas causas daria um desvio da luz na direção prevista por Einstein.” O professor Licínio Cardoso, da Escola Politécnica do Rio, também escreveria uma crítica a Einstein, Realtividade Imaginária, publicada em O Jornal de 16 de maio de 1915.

O eclipse de Sobral e a visita de Einstein ao Brasil: a ciência pura contra os positivistas

Os ataques de Gago Coutinho à teoria da Relatividade tinham, além de um aspecto científico e filosófico, um caráter político. Em seu primeiro artigo em O Jornal, diz que a Relatividade, cujo “princípio fundamental [é] aparentemente neutro e inocente”, “é uma espécie de ‘imperialismo’ ou ‘bolchevismo’, generalizado à Mecânica.”

De fato, Einstein – o pacifista e judeu que abdicara a nacionalidade alemã – foi alvo dos movimentos nacionalistas e antisemitas pelo fato de muitos judeus serem identificados com o internacionalismo socialista, particularmente o marxismo. Desde a Revolução de Outubro de 1917, os opositores dos bolcheviques diziam que a revolução socialista era uma “conspiração judaica universal”.

Em seus ataques à teoria da Relativade Geral, Coutinho tinha o objetivo, no limite, defeder não só o positivismo, mas o regime político que havia chegado ao poder com base nesse sistema filosófico, a República Velha. Porém, as transformações econômicas e socias pelas quais o Brasil passava, com uma industrialização e urbanização crescentes, fariam com que, em apenas cinco anos depois da visita de Einstein ao Brasil, o Brasil passasse pela Revolução de 1930.

Todas as áreas da vida brasileira estavam em profunda transformacão, inclusive a ciência e a educação.

Para Christina Barboza, “a passagem de Einstein pelo Brasil e as várias conferências que ele proferiu ajudaram a corroborar e a consolidar esse movimento prol da ciência pura, da pesquisa em ciência, que o Morize estava envolvido”. Por sua vez, isso “ajudou a corroborar essa defesa da implantação de uma pesquisa básica, com pesquisadores em tempo integral, com autonomia, que vai culminar na criação das universidades”, diz.

O maior exemplo desse movimento seria a criação, em 1934, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras das Universidade de São Paulo, cujo primeiro diretor, Teodoro Ramos, era um defensor da ciência pura e já havia escrito um trabalho sobre a relatividade de Einstein.

Einstein com Morize na vista ao Observatório Nacional.

É nesse sentido que “o movimento que levou à criação das universidades foi de combate ao positivismo”, explica a pesquisadora do MAST.

Porém, esse movimento envolvia também a educação básica. Morize e os defensores da ciência pura tinham, segundo Barboza, “essa visão de que não adiantava fazer uma renovação só por cima, na profissionalização do cientista, no sentido amplo, na formação de uma comunidade científica no Brasil, mas que tinha que ser feito por baixo também, universalizando o acesso ao ensino, que outros países fizeram nos seus processos históricos e o Brasil não.”

Um amplo movimento de renovação educacional e em defesa da escola pública e universal surgiria também na década de 1930, particularmente com Anísio Teixeira. Antes, o próprio Morize já havia participado com Roquette-Pinto da criação da Rádio Sociedade, em 1923, que, segundo Barboza, “também tinha esse sentido educativo”, para levar “o conhecimento para o homem do povo, chegar a todos os lares e nos analfabetos”.


Esse, talvez, tenha sido um dos movimentos educacionais mais importantes no Brasil no século XX, que uniu a defesa da ciência pura, a criação das universidades e a preocupação em levar o conhecimento ao povo através de uma educação pública, universal e gratuita. 

É também tudo isso o que esteve em jogo nas comemorações do centenário do eclipse de Sobral, com seu amplo alcance na divulgação não de uma das teorias mais revolucionária da ciência, mas também da própria história da ciência do país, cujo papel o Observatório Nacional, Morize e todos os defensores da ciência pura têm lugar de destaque.




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