Esta
não é a primeira vez que vocês ouvem falar de Galileu (1564-1642), e não será a
última. Nascido na Itália e considerado o primeiro cientista moderno, Galileu
não só revolucionou a ciência, elaborando uma “nova Física”, como também
transformou a filosofia de sua época.
A
transformação que Galileu causou na ciência e na filosofia fez parte de uma
série de transformações que aconteceram a partir do século 15, as quais
marcaram a transição do feudalismo para o capitalismo comercial, ou da Idade
Média para a Idade Moderna. Algumas dessas transformações foram: o rápido
crescimento das cidades e a ascensão de uma nova classe social, a burguesia; as
grandes transformações artísticas com o Renascimento, particularmente com os
trabalhos de Leonardo da Vinci (1452-1543) e Michelangelo (1475-1564); e a
Reforma Protestante, que contestou o poder e a autoridade da Igreja Católica.
A
resposta da Igreja Católica à Reforma Protestante terá um impacto direto sobre a
vida de Galileu e a ciência de sua época. Entre 1545 e 1565, no Concílio de
Trento, a Igreja Católica organiza a Contrarreforma, que reafirmou a autoridade
da Bíblia, reorganizou o Tribunal da Inquisição e criou o Índex, um catálogo de
livros proibidos para os fiéis. São esses instrumentos da Contrarreforma
Católica que se voltarão mais tarde contra Galileu.
1.
A defesa de Galileu do movimento da Terra e sua condenação
E
qual foi a grande transformação que Galileu ajudou a realizar na ciência e na
filosofia? Desde os 20 anos de idade, Galileu foi um defensor do que ficou
conhecido como modelo heliocêntrico (“hélio” = Sol + “cêntrico” = centro), que
defendia que Sol era o centro do universo e a Terra se movia ao seu redor. O
modelo heliocêntrico havia sido elaborado por Copérnico (1473 – 1543), sendo
também conhecido como modelo copernicano.
Antes
da elaboração do modelo heliocêntrico, acreditava-se que a Terra estava parada
no centro do mundo, enquanto o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas giravam ao
seu redor. Apesar de hoje quase todos acreditarem no movimento da Terra,
veremos que existiam boas razões para se acreditar que a Terra estava parada. O
modelo geocêntrico (“geo” = Terra + “cêntrico” = centro) foi elaborado por
muitos filósofos e astrônomos, entre eles Aristóteles (384 AC – 322 AC) e Ptolomeu (90 – 168), ficando também conhecido
como modelo aristotélico-ptolomaico.
Na
época de Galileu, a Igreja Católica era contrária ao modelo heliocêntrico, pois
existem passagens da Bíblia (Josué e Jó, por exemplo) que indicam que a Terra
está parada e o Sol se movimenta ao seu redor. Em 1616, o livro de Copérnico
que defendia o movimento da Terra, As revoluções dos orbes celestes, foi
colocado no Índex e o modelo heliocêntrico foi proibido de ser divulgado.
Apesar
disso, em fevereiro de 1632, Galileu publicou o livro Diálogo sobre os dois
máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, onde defendeu o
movimento da Terra. Cinco meses depois, o livro foi proibido. Em abril de 1633,
começou em Roma o julgamento de Galileu pelo Tribunal da Inquisição da Igreja
Católica. Dois meses depois do início do julgamento, ele foi condenado à prisão
domiciliar perpétua pela heresia de defender o movimento da Terra, uma vez que
isso era “contrário às Sagradas Escrituras”. Apenas em 1992, a Igreja Católica
retirou a condenação de Galileu.
2.
A Física e a Astronomia de Aristóteles
Além
de ter sido uma instituição muito rica, chegando a possuir um terço das terras
da Europa, a Igreja Católica exercia um poder político muito grande e
controlava muitas escolas e universidades na época de Galileu.
O
ensino de Física e de Astronomia nas instituições católicas era baseado na obra
de Aristóteles (384 AC – 322 AC).
Discípulo de Platão, Aristóteles foi talvez o filósofo que escreveu sobre a
maior variedade de assuntos – Política, Poética, Lógica, Metafísica e Biologia,
além de Física e Astronomia. Essa enorme obra teve também a mais duradoura
influência sobre a história da humanidade – entre Aristóteles e Galileu,
passaram-se 2.000 anos!
A
principal questão na Física e na Astronomia de Aristóteles era o movimento. Com
sua Física, Aristóteles buscou explicar o movimento dos corpos sobre a Terra,
enquanto sua Astronomia buscou explicar o movimento dos astros (Sol, Lua,
planetas e estrelas) no céu.
2.1.
Os movimentos dos corpos sobre a Terra
Aristóteles
classificou os movimentos sobre a Terra em dois tipos de movimento: o violento
e o natural.
O
movimento violento possui uma causa, por exemplo o movimento de uma flecha
(causado pelo braço do arqueiro), de uma bala de canhão (causado pela explosão
da pólvora) ou de uma pedra que é erguida do chão (causado pela mão de uma
pessoa).
Já
o movimento natural depende dos elementos (terra, água, ar e fogo) que formam
um corpo e acontece em linha reta em direção ao seu lugar natural. Por exemplo,
corpos leves, nos quais predominam os elementos ar e fogo, possuem o movimento
natural para cima, pois o lugar natural deles é o alto.
Já
corpos pesados, nos quais predominam o elemento terra e água, possuem o
movimento natural de queda. Uma pedra, por exemplo, seria formada
principalmente pelo elemento terra. Depois de tirada do chão por um movimento
violento e ser solta, uma pedra tende a voltar ao seu lugar natural (superfície
da Terra) realizando um movimento de queda em linha reta. Assim, o movimento de
queda em linha reta seria o movimento natural da pedra, pois faz voltar ao seu
lugar natural.
Depois
de chegar à superfície da Terra, a pedra tende a ficar em repouso. Por isso,
para Aristóteles, ou um corpo está em movimento em direção ao seu lugar
natural, ou em repouso em seu lugar natural. O movimento natural e o repouso,
para ele, são contrários um ao outro e, portanto, podemos dizer que são
absolutos.
2.2.
O modelo geocêntrico: Terra parada, Sol em movimento e universo dividido
O
fato de os quatro elementos terem pesos diferentes determinava, para
Aristóteles, o lugar natural deles na Terra. O lugar natural do elemento mais
pesado, a terra, é o centro do nosso planeta. Depois da terra, vem a água,
depois o ar e por último o fogo.
Isso
vale também para o lugar que a Terra ocupa no universo. A Terra, para Aristóteles,
se encontra parada no centro do universo, pois é formada pelo mais pesado dos
elementos, a terra. Além de estar parada e no centro do universo, Aristóteles
acreditava também que a Terra fosse uma esfera.
Ao
redor da Terra parada, o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas se moveriam em
círculos. Assim, ao contrário do movimento natural em linha reta dos corpos na
Terra, os corpos celestes realizariam um movimento natural circular. Além
disso, os corpos celestes não seriam formados por nenhum dos quatro elementos
dos corpos da Terra, mas por um quinto elemento, ou quinta-essência – o éter.
Isso
fazia com que o céu e a Terra, para Aristóteles, fossem mundos totalmente
diferentes e separados: os corpos no céu seriam feitos de éter e realizariam um
movimento circular, enquanto os corpos na Terra seriam formados pelos quatro
elementos e realizariam movimentos em linha reta ou violentos.
Para
Aristóteles, o céu ocupado pelos astros seria um lugar de perfeição e
eternidade: os corpos celestes seriam objetos perfeitos que realizariam um
movimento circular eterno. Enquanto isso, a Terra seria o lugar da
transformação e da imperfeição, onde as coisas nascem, crescem e morrem, ou
seja, são finitas.
Como
vimos, essa concepção de mundo formulada por Aristóteles ficou conhecida como
modelo geocêntrico. Além de explicar o movimento dos astros, o modelo
geocêntrico explicava as fases da Lua e as estações do ano, permitia a previsão
de eclipses do Sol e da Lua e era usado para a localização de navios em alto
mar através das estrelas.
Porém,
o modelo geocêntrico de Aristóteles tinha alguns problemas. Ele não explicava,
por exemplo, os movimentos retrógrados dos planetas.
Para
solucionar esse e outros problemas, um dos maiores astrônomos da Antiguidade,
Ptolomeu (90 – 168), passou a considerar que os planetas realizam dois
movimentos circulares: um ao redor da Terra (deferente), outro ao redor da
trajetória ao redor da Terra (epiciclo).
Além
da explicação teórica de Aristóteles para o fato de a Terra estar parada no
centro do universo, Ptolomeu levantou algumas considerações físicas contra o
movimento da Terra. Segundo ele, além de “vermos” o Sol e os outros astros se
moverem e não sentirmos o movimento da Terra e, “se o nosso planeta estivesse
em movimento, o ar, as nuvens, os pássaros, e outros objetos não ligados à
Terra seriam deixados para trás. Um homem que saltasse verticalmente voltaria a
pisar na Terra muito longe do ponto do salto porque a Terra debaixo dele
continuaria em movimento”. Como nada disso é observado, para Ptolomeu, a Terra
só podia estar parada.
Ptolomeu
e Aristóteles não possuíam uma conceito que viria a ser formulada por Galileu e
outros cientistas: a inércia, ou a tendência de os corpos continuarem em
movimento.
3.
O princípio da inércia e a relatividade do movimento
Galileu
se colocou frontalmente contra a Física e a Astronomia de Aristóteles. Isso
quer dizer que ele defendeu uma nova concepção de movimento, além de defender,
como vimos, o modelo heliocêntrico. A defesa de Galileu do movimento da Terra
fez com que ele fosse um dos formuladores de uma “nova Física”, que tem a
inércia e a relatividade do movimento como princípios fundamentais.
O
modelo heliocêntrico conseguiu explicar muita coisa que o modelo geocêntrico
não explicava. Além disso, esse modelo conseguiu prever com uma precisão maior
a posição dos planetas, o que era muito importante na época das grandes
navegações para saber a posição de navios em alto mar.
Porém,
o modelo heliocêntrico trouxe uma série de problemas físicos. A partir dos
argumentos de Ptolomeu contra o movimento da Terra, era comum se perguntar na
época de Galileu: se a Terra se move, por que não
sentimos seu movimento? Ou ainda: se a Terra se move, por que o movimento da
Terra não afeta o movimento de queda de um corpo?
Galileu
respondeu a essas questões formulando o princípio da inércia. Apesar de a
formulação do princípio da inércia de Galileu ser diferente da de Newton,
Galileu corretamente considerou que o princípio da inércia é um princípio de
conservação do movimento – “o que está em movimento tende a continuar em
movimento”.
Resumidamente,
o princípio da inércia permite Galileu dizer que não sentimos o movimento da
Terra, pois nos movemos junto com a Terra. Assim, tudo na Terra compartilha o
seu movimento. Esse movimento que temos com a Terra não se perde quando
pulamos, quando uma pedra é jogada para cima ou uma bola é solta de uma torre.
Podemos
dizer que o princípio da inércia introduz uma nova concepção de movimento e de
repouso. Se a gente compartilha o movimento da Terra, tudo se passa como se a
Terra estivesse parada.
Vamos
a um exemplo. Na imagem abaixo, um rapaz está sobre um
trem em movimento.
Podemos
ver que o rapaz está em movimento com o trem. A partir das considerações de
Galileu, se ambos possuem o mesmo movimento, podemos dizer que estão parados um
em relação ao outro: o rapaz está parado em relação ao trem, enquanto o trem
está parado em relação ao rapaz.
Agora,
quando podemos dizer que um corpo se movimenta? Segundo Galileu, um corpo só se
movimenta se ele não possui o mesmo movimento em relação a outro corpo. Isso
quer dizer que um corpo se movimenta se ele se afasta ou se aproxima de um
outro corpo.
Por
exemplo, na imagem acima, podemos dizer que um dos postes atrás do rapaz não
possuí o mesmo movimento que rapaz e o trem. Assim, para o poste, o trem e o
rapaz estão em movimento. Podemos também dizer que, para o rapaz e o trem, é o
poste que está em movimento (isso de fato é estranho, mas é uma coisa que
podemos considerar).
É
fácil verificar que essa concepção de movimento de Galileu derivada do
princípio da inércia é muito diferente da concepção de movimento de
Aristóteles. Se para Aristóteles o movimento e o repouso são absolutos, para
Galileu eles são uma relação entre corpos que compartilham ou não o mesmo
movimento.
Hoje
dizemos que para Galileu o movimento é relativo, pois depende de um
referencial. Esse referencial pode ser uma pessoa, um trem, a Terra, o Sol ou
qualquer outra coisa. Assim, se um referencial possui o mesmo movimento de um
corpo, esse corpo está parado para esse referencial. Agora, se esse referencial
não compartilha o movimento desse corpo, ele está em movimento para esse
referencial.
Resumidamente,
podemos dizer que:
1.
Um corpo está em movimento quando sua posição muda em relação a um referencial,
ou seja, quando ele se afasta ou se aproxima de um referencial.
2.
Um corpo está parado quando sua posição em relação a um referencial não muda.
Galileu
elaborou o princípio da inércia e o da relatividade do movimento para defender
o modelo heliocêntrico, ou seja, para defender que a Terra se move. Porém,
Galileu conseguiu provar que a Terra se move? Infelizmente, não. Ele tentou
fazer isso considerando que as marés são uma prova do movimento da Terra, mas
Newton depois mostra que Galileu estava errado.
Apesar
disso, Galileu consegue mostrar que os argumentos dos defensores do modelo
geocêntrico estão errados.
As primeiras provas
indiretas do movimento da Terra surgem algumas décadas do falecimento de
Galileu. Entre aqueles que ajudam a mostrar que, no referencial do Sol, a Terra
se move é Newton. Mas esse é um outro assunto, cuja discussão pode ser encontrada em: “A forma da Terra e seu movimento de
rotação”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário