O ENEM é realizado desde 1998 e, desde
então, vem passando por enormes transformações. Sem dúvida alguma, a maior
delas foi ter se tornado o exame de ingresso para um enorme número de
universidades particulares e privadas, característica muito distante de seu
objetivo inicial.
Tendo se tornado, portanto, um vestibular
(e um dos maiores do mundo), o ENEM acaba por reproduzir uma série de
características que os documentos oficiais do próprio Ministério da Educação
tanto criticam. Por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio caracterizam o ensino de Física como um ensino
distanciado do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos.
Com isso, segundo o
documento, o ensino de Física acaba se voltando à “memorização de fórmulas ou
repetição automatizada de procedimentos, em situações artificiais ou
extremamente abstratas”.
Muito bem, não seria razoável que o próprio
Ministério da Educação se esforçasse para superar essa crítica ao ensino de
Física elaborando um ENEM sem esses vícios? Isso porque sabemos como os
vestibulares (e também, agora, o ENEM) pautam o conteúdo de toda a educação
básica, contribuindo para um ensino descontextualizado, cuja ênfase se dá na
apresentação de teorias, na memorização de fórmulas e na resolução de
exercícios de (e para) o vestibular, que pouco ou quase nada dizem respeito à
vida do aluno.
Infelizmente, não é isso que temos visto
nos últimos ENEMs, e o último não foi diferente. O professor de Física Fernando
Lang, da UFGRS, fez uma série de críticas à prova deste ano, pedindo inclusive
a anulação de três questões. Uma dessas questões vale a pena ser comentada,
pois além de possuir graves erros, possui muitos dos vícios que o Ministério da Educação critica. O enunciado da questão é o seguinte:
Para realizar um experimento com uma garrafa PET cheia d'agua,
perfurou-se a lateral da garrafa em três posições a diferentes alturas. Com a
garrafa tampada, a água não vazou por nenhum dos orifícios, e, com a garrafa
destampada, observou-se o escoamento da água conforme ilustrado na figura.
Se os elaboradores dessa questão tivessem
feito o experimento, teriam visto que seu enunciado está duplamente errado.
Primeiro, está errado em dizer que, “com a garrafa tampada, a água não vazou
por nenhum dos orifícios”, o que pode ser comprovado realizando a experiência
proposta.
Como mostram as fotos acima, a água não
vaza se a garrafa tiver apenas um furo; com dois furos, a água vaza pelo furo
de baixo e com três furos a água vaza pelos dois furos de baixo, enquanto pelo
furo de cima entra ar, pois a pressão da coluna de água sobre esse furo é
menor. Isso pode ser verificado
fazendo dois furos a uma mesma altura da garrafa e observando o que acontece
com a garrada fechada e aberta.
As três primeiras fotos acima, da esquerda
para a direita, mostram a garrafa fechada cheia com os dois furos tampados,
depois com um dos furos abertos, não saindo água (como na experiência anterior,
com os furos a alturas diferentes), e, finalmente, com os dois furos a uma
mesma altura, em que não sai água por nenhum dos furos, pois a pressão da
coluna de água é a mesma sobre eles. A última foto mostra o que acontece com a
garrafa destampada: a água sai pelos dois furos de mesma altura, sendo
empurrada pelo ar que entra pela boca da garrafa.
O segundo erro no enunciado da questão do ENEM está em sua figura, como mostra a foto abaixo.
Ao contrário da imagem do enunciado, a experiência mostra que o alcance da água é menor que sai pelo furo de
baixo. O alcance do da água que sai pelo furos depende de duas coisas: da
velocidade de escoamento da água, que depende, por sua vez, da altura da coluna
de água, e do tempo que a água leva para chegar à superfície onde a garrafa
esta apoiada. É fácil perceber que a água sai com maior velocidade pelo furo de
baixo, porém o tempo que ela leva para alcançar a superfície onde está apoiada
é o menor, de maneira que o alcance da água não é maior pelo furo de baixo. O
maior alcance, como mostra a imagem abaixo do professor Fernando Lang, acontece
com a água que sai do furo a metade da altura da coluna de água, pois, apesar
de sair com uma velocidade menor do que o furo de baixo, leva um tempo maior
para alcançar a superfície onde a garrafa está apoiada.
Como mostra a imagem acima, a água que sai
pelo furo mais próximo à base da garrafa de água tem um alcance maior apenas se
a garrafa for levantada a um altura igual à coluna de água em seu interior.
Um outro aspecto que chamou muito a atenção
sobre essa questão foi a resposta que os cursinhos mais tradicionais de São
Paulo (Anglo, Etapa e Objetivo) deram a ela.
Com a garrafa destampada, todos dizem que a
velocidade da água que sai do furo mais de baixo é maior, pois a altura da
coluna de água (e a pressão) sobre esse furo é maior. E só. O problema é que o
o alcance não depende apenas da velocidade, mas também do tempo de queda da
água, o que passou despercebido por todos eles. Depois, com a garrafa tampada,
nenhum deles conseguiu associar o que acontece com a garrafa destampada para
essa nova situação, pois a pressão de água sobre os furos depende da altura da
coluna de água e, portanto, a pressão é menor sobre o furo de cima, fazendo com
que entre ar por ele quando os dois furos de baixo estão abertos.
O que mais chama a atenção é o fato dos
cursinhos considerarem o enunciado e a imagem dessa questão corretos e o
raciocínios deles partirem desse pressuposto. Com isso, eles acabam por não
dizer nada a respeito do que realmente acontece, sendo todos os comentários incompletos, pois
falta-lhes a análise do experimento propriamente dito.
Portanto, transformado num vestibular, o
ENEM traz agora consigo todos os vícios que o Ministério da Educação gostaria
que fossem eliminados do ensino de Física. Vale mais uma vez lembrá-los:
distanciado do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos.
É
necessário reforçar o fato dessa questão do ENEM e sua análise pelos cursinhos privilegiarem a teoria e a abstração, distantes da prática e de
exemplos concretos? Quer dizer, seja os vestibulares, seja os próprios
cursinhos (que possuem um lobby
pesado sobre os rumos do Ministério da Educação), acabam conformando o ensino
de Física (mas não só, toda a educação básica também) a um tipo de aula, de
sequência didática, de conteúdo, etc., que privilegia a teoria e a abstração e
não diz respeito a nada que acontece na prática. Não é à toa que cada vez mais
a educação básica se conforma cada vez mais aos cursinhos, com todas as
dimensões de um ensino apostilado para todos os envolvidos nessa etapa de
ensino (professores, alunos, pais, etc.).
A
impressão que fica é que um ensino tal como almejado pelo Ministério da
Educação só seria possível com o fim do vestibular e do ensino apostilado dos
cursinhos. E por que não levar essa ideia a sério?
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