A questão de Física duplamente errada do ENEM de 2013 (a pedido da Evelyn)

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O ENEM é realizado desde 1998 e, desde então, vem passando por enormes transformações. Sem dúvida alguma, a maior delas foi ter se tornado o exame de ingresso para um enorme número de universidades particulares e privadas, característica muito distante de seu objetivo inicial.

Tendo se tornado, portanto, um vestibular (e um dos maiores do mundo), o ENEM acaba por reproduzir uma série de características que os documentos oficiais do próprio Ministério da Educação tanto criticam. Por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio caracterizam o ensino de Física como um ensino 
distanciado do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos. 
Com isso, segundo o documento, o ensino de Física acaba se voltando à “memorização de fórmulas ou repetição automatizada de procedimentos, em situações artificiais ou extremamente abstratas”.

Muito bem, não seria razoável que o próprio Ministério da Educação se esforçasse para superar essa crítica ao ensino de Física elaborando um ENEM sem esses vícios? Isso porque sabemos como os vestibulares (e também, agora, o ENEM) pautam o conteúdo de toda a educação básica, contribuindo para um ensino descontextualizado, cuja ênfase se dá na apresentação de teorias, na memorização de fórmulas e na resolução de exercícios de (e para) o vestibular, que pouco ou quase nada dizem respeito à vida do aluno.

Infelizmente, não é isso que temos visto nos últimos ENEMs, e o último não foi diferente. O professor de Física Fernando Lang, da UFGRS, fez uma série de críticas à prova deste ano, pedindo inclusive a anulação de três questões. Uma dessas questões vale a pena ser comentada, pois além de possuir graves erros, possui muitos dos vícios que o Ministério da Educação critica. O enunciado da questão é o seguinte:


Para realizar um experimento com uma garrafa PET cheia d'agua, perfurou-se a lateral da garrafa em três posições a diferentes alturas. Com a garrafa tampada, a água não vazou por nenhum dos orifícios, e, com a garrafa destampada, observou-se o escoamento da água conforme ilustrado na figura.

Se os elaboradores dessa questão tivessem feito o experimento, teriam visto que seu enunciado está duplamente errado. Primeiro, está errado em dizer que, “com a garrafa tampada, a água não vazou por nenhum dos orifícios”, o que pode ser comprovado realizando a experiência proposta.


Como mostram as fotos acima, a água não vaza se a garrafa tiver apenas um furo; com dois furos, a água vaza pelo furo de baixo e com três furos a água vaza pelos dois furos de baixo, enquanto pelo furo de cima entra ar, pois a pressão da coluna de água sobre esse furo é menor. Isso pode ser verificado fazendo dois furos a uma mesma altura da garrafa e observando o que acontece com a garrada fechada e aberta.


As três primeiras fotos acima, da esquerda para a direita, mostram a garrafa fechada cheia com os dois furos tampados, depois com um dos furos abertos, não saindo água (como na experiência anterior, com os furos a alturas diferentes), e, finalmente, com os dois furos a uma mesma altura, em que não sai água por nenhum dos furos, pois a pressão da coluna de água é a mesma sobre eles. A última foto mostra o que acontece com a garrafa destampada: a água sai pelos dois furos de mesma altura, sendo empurrada pelo ar que entra pela boca da garrafa.

O segundo erro no enunciado da questão do ENEM está em sua figura, como mostra a foto abaixo.


Ao contrário da imagem do enunciado, a experiência mostra que o alcance da água é menor que sai pelo furo de baixo. O alcance do da água que sai pelo furos depende de duas coisas: da velocidade de escoamento da água, que depende, por sua vez, da altura da coluna de água, e do tempo que a água leva para chegar à superfície onde a garrafa esta apoiada. É fácil perceber que a água sai com maior velocidade pelo furo de baixo, porém o tempo que ela leva para alcançar a superfície onde está apoiada é o menor, de maneira que o alcance da água não é maior pelo furo de baixo. O maior alcance, como mostra a imagem abaixo do professor Fernando Lang, acontece com a água que sai do furo a metade da altura da coluna de água, pois, apesar de sair com uma velocidade menor do que o furo de baixo, leva um tempo maior para alcançar a superfície onde a garrafa está apoiada.


Como mostra a imagem acima, a água que sai pelo furo mais próximo à base da garrafa de água tem um alcance maior apenas se a garrafa for levantada a um altura igual à coluna de água em seu interior.

Um outro aspecto que chamou muito a atenção sobre essa questão foi a resposta que os cursinhos mais tradicionais de São Paulo (Anglo, Etapa e Objetivo) deram a ela.


Com a garrafa destampada, todos dizem que a velocidade da água que sai do furo mais de baixo é maior, pois a altura da coluna de água (e a pressão) sobre esse furo é maior. E só. O problema é que o o alcance não depende apenas da velocidade, mas também do tempo de queda da água, o que passou despercebido por todos eles. Depois, com a garrafa tampada, nenhum deles conseguiu associar o que acontece com a garrafa destampada para essa nova situação, pois a pressão de água sobre os furos depende da altura da coluna de água e, portanto, a pressão é menor sobre o furo de cima, fazendo com que entre ar por ele quando os dois furos de baixo estão abertos.

O que mais chama a atenção é o fato dos cursinhos considerarem o enunciado e a imagem dessa questão corretos e o raciocínios deles partirem desse pressuposto. Com isso, eles acabam por não dizer nada a respeito do que realmente acontece, sendo todos os comentários incompletos, pois falta-lhes a análise do experimento propriamente dito.

Portanto, transformado num vestibular, o ENEM traz agora consigo todos os vícios que o Ministério da Educação gostaria que fossem eliminados do ensino de Física. Vale mais uma vez lembrá-los: 
distanciado do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos.
É necessário reforçar o fato dessa questão do ENEM e sua análise pelos cursinhos privilegiarem a teoria e a abstração, distantes da prática e de exemplos concretos? Quer dizer, seja os vestibulares, seja os próprios cursinhos (que possuem um lobby pesado sobre os rumos do Ministério da Educação), acabam conformando o ensino de Física (mas não só, toda a educação básica também) a um tipo de aula, de sequência didática, de conteúdo, etc., que privilegia a teoria e a abstração e não diz respeito a nada que acontece na prática. Não é à toa que cada vez mais a educação básica se conforma cada vez mais aos cursinhos, com todas as dimensões de um ensino apostilado para todos os envolvidos nessa etapa de ensino (professores, alunos, pais, etc.).

A impressão que fica é que um ensino tal como almejado pelo Ministério da Educação só seria possível com o fim do vestibular e do ensino apostilado dos cursinhos. E por que não levar essa ideia a sério?

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